A MELANCOLIA DOS ÔNIBUS ESPACIAIS

No texto de hoje vou falar a respeito do foguete mais incrível já feito pelo homem. Não me refiro ao Saturno V, nem mesmo ao Falcon Heavy, o foguete mais impressionante feito pelo homem era uma mistura de foguete e avião, era um Ônibus Espacial.

A ORIGEM

Depois dos EUA vencerem a corrida espacial ao enviar o homem para a Lua, era hora de olhar para a órbita baixa da Terra. De certa forma isso foi frustrante, a Nasa fez o homem ir para a Lua e agora ia apenas mandar astronautas para a órbita baixa? O próximo passo ideal não seria tentar ir para Marte? Por maior que fosse o sentimento de retrocesso, isso era o melhor a se fazer, não havia a menor possibilidade de se pensar em ir para Marte em meados dos anos 70, nem dinheiro ou motivação para isso. O programa Apollo gastou um dinheiro que nunca mais seria gasto novamente e era insustentável para a Nasa gastar tanto dinheiro em algo que não fosse minimamente sustentável. Foi com essa ideia em mente que foi iniciado o desenvolvimento dos Ônibus Espaciais.

A ideia da Nasa era algo brilhante, mas ao mesmo tempo uma loucura. Todas as vezes que eu olho para um Shuttle fica difícil imaginar que aquela coisa realmente voava, digo isso porque se alguém me perguntasse se colocar uma aeronave em um foguete e levar ela para o espaço era uma boa ideia, eu certamente responderia que isso seria uma tremenda loucura. Imagine a complexidade de se fazer uma aeronave que seria transportada por um foguete até a órbita baixa e depois iria reentrar na atmosfera como um planador, imagine o centro de gravidade completamente assimétrico daquele sistema, imagine a complexidade de se fazer um escudo de calor e componentes reutilizáveis, enfim, apesar de toda essa complexidade, a Nasa tirou o projeto do papel.

A entidade alegava que aquele era o futuro, que dessa vez seria mais barato e sustentável voar, que seria possível fazer até dois voos por mês e que até mesmo pessoas comuns poderiam conhecer o espaço. Ora, a Nasa é uma entidade governamental, eles dependem da verba aprovada pelo congresso americano, então ter um apelo desses era fundamental, mas o preço de vender uma ideia quase impossível dessas acabou saindo muito caro.

O PROJETO

Os Shuttles americanos eram máquinas extremamente complexas, fruto de uma época muito diferente da atual, onde se busca simplificar os processos visando reduzir os custos a qualquer custo. O projeto poderia ser dividido em três partes principais, o orbitador, o tanque externo e os foguetes auxiliares de combustível sólido (SRB).

O TANQUE EXTERNO

Feito de ligas de alumínio, medindo 47 metros de comprimento, pesando 30 toneladas vazio e mais de 750 toneladas quando cheio com 2 milhões de litros de propelentes, o tanque externo do Shuttle era responsável por transportar o hidrogênio e oxigênio líquido (LOX) usado como combustível dos motores RS 25.

O tanque carregava o hidrogênio e o oxigênio pois eram necessários ter ambos os elementos para que os motores principais pudessem operar. Isso acontece porque o combustível precisa ser misturado com o oxidante, no caso do hidrogênio a razão é de 6:1, ou seja, para cada grama de hidrogênio era utilizado 6 gramas de LOX.

O hidrogênio possui uma densidade muito menor que o oxigênio, por esse motivo ele ocupa muito mais espaço, então a maior parte do tanque externo carregava hidrogênio, por isso o tanque externo tinha aquelas dimensões enormes. O oxigênio líquido que ficava armazenado na parte superior do tanque precisava descer através de dutos para que eles fossem misturados com o hidrogênio líquido nos motores do Shuttle.

    Outros foguetes costumam usar Querosene (RP-1), como o Falcon 9, a principal vantagem desse propelente é que a temperatura de ebulição dele é bem maior. Sim, a temperatura de ebulição do hidrogênio e do oxigênio sempre foram problemas enormes. O Hidrogênio entra em ebulição a -253°C, já o oxigênio a -183°C, portanto, para que os propelentes fossem mantidos no estado líquido, era necessário que houvesse um isolamento térmico muito eficiente, caso contrário, os propelentes internos rapidamente iriam evaporar e aumentar a pressão no tanque até ele explodir. Essa proteção térmica foi feita com um material de densidade semelhante a um isopor, no entanto pedaços das placas de proteção podiam se soltar e atingir o orbitador e os boosters laterais.

    Ao contrário do orbitador e dos boosters, o tanque externo não era reutilizado, na verdade ele entrava em órbita após a separação do orbitador e posteriormente reentrava na atmosfera até ser completamente destruído.

OS POLÊMICOS FOGUETES AUXILIARES

    Embora o Shuttle tivesse seus 3 motores principais, os RS 25, a maior parte do empuxo era gerado pelos foguetes auxiliares de combustíveis sólidos, os SRB.

  Os foguetes auxiliares eram simplesmente impressionantes, eles carregavam 500 toneladas de combustível sólido, usando perclorato de amônio como oxidante e pó de alumínio como combustível, eles eram responsáveis ​​por 85% do empuxo do Shuttle. Só para se ter uma ideia do quanto os Shuttles tinham um empuxo fora da realidade, cada booster auxiliar tinha aproximadamente 13.000 KN de empuxo, enquanto cada motor RS 25 tinha por volta de 1.850 KN de empuxo. Somando tudo, o Shuttle tinha mais de 30.000 KN de empuxo ao nível do mar, isso era quase os 35.000 KN do Saturno V. Para efeito de comparação, um Falcon 9 tem 7500 KN de empuxo, já um Falcon Heavy tem por volta de 22.800 KN de empuxo. Pouco se falava sobre o quanto os Shuttles eram poderosos, mas eles tinham que ser mesmo, visto que somente o orbitador com a carga poderia pesar até 114 toneladas, imagine levar 114 toneladas de carga para o espaço. Foi por serem tão poderosos que os boosters auxiliares foram reutilizados no novo SLS, o foguete que será responsável por levar o homem de volta a Lua nas missões Artemis.

    Por mais impressionantes que fossem os foguetes auxiliares, eles tinham certos problemas. Primeiro, fazer a propulsão do Shuttle ser majoritariamente feita por foguetes de combustível sólido sempre foi uma preocupação para a Nasa. Isso se devia, pois, uma vez iniciada a combustão, os foguetes só paravam de queimar quando todo propelente acabava, diferente de um foguete de combustível líquido que pode parar a queima a qualquer momento. Dessa forma, era impossível abortar uma missão no estágio inicial de ascensão, um risco real. 

    Além disso, havia outro problema. Inicialmente os boosters laterais tinham 4 seções, cada uma delas preenchidas de combustível sólido. As seções eram parafusadas umas nas outras e possuíam dois anéis de borracha para vedação. Os anéis de vedação eram necessários para que os gases inflamados da seção superior não os atravessassem e atingissem o lado de fora do booster, pois se algo assim ocorresse o Shuttle explodiria, por esse motivo, eram usados ​​dois anéis de vedação, sendo o segundo puramente uma redundância. No entanto, os anéis eram feitos de borracha, material que perde sua resiliência se for submetido a uma temperatura muito baixa, esse problema cobraria um preço muito alto no futuro.



Sistema de vedação e representação das forças atuantes no booster.

A NAVE ESPACIAL

    Não, não era a Starship, era o Shuttle mesmo. O orbitador foi o mais próximo que fizemos de uma nave espacial, ele era incrível, se parecia muito com um avião, mas sem os motores nas asas, em vez disso, carregava três enormes motores RS 25 na parte de trás da fuselagem e tinha um desenho de asas lindo, era coisa de cinema.

  O orbitador media 37 metros de comprimento e 23 metros de envergadura, tinha um enorme compartimento de cargas que podia transportar até 24 toneladas para o espaço, seu peso vazio era de quase 90 toneladas. Ele possuía uma cabine pressurizada que transportava até 7 astronautas e tinha vários outros recursos de suporte a vida.

    Ele não era um avião pois não podia sustentar voo sozinho, mas também não era apenas uma carga como o Buran soviético, haja vista que o Shuttle queimava seus motores no primeiro e segundo estágio do lançamento. 

    A decolagem do orbitador era algo difícil de acreditar, ele era colocado na vertical junto ao tanque externo e aos boosters auxiliares e decolava na vertical. Após a separação dos boosters, o orbitador conseguia atingir a órbita baixa apenas com os seus motores RS 25, logo após esse processo o tanque externo se separava do orbitador.

   Lá em cima, o orbitador realizou diversas missões, desde o lançamento de satélites militares, sondas, módulos da Estação Espacial Internacional até o Hubble, era um veículo extremamente versátil, mas tudo que sobe precisa descer e a reentrada na atmosfera nunca foi algo fácil de se fazer.

  Para reentrar na atmosfera o orbitador contava com um escudo de calor feito de ladrilhos de cerâmica e outros materiais, os bordos de ataque das asas e nariz eram submetidos ​​a temperaturas mais altas de até 1650°C, por isso eram feitos de carbono reforçado (RCC). A reentrada do orbitador acontecia com um ângulo de 40° e as altas temperaturas eram ocasionadas devido a velocidade que poderia ultrapassar os 25.000 km/h, a uma velocidade dessas o ar se comprimia devido a velocidade hipersônica do veículo, causando uma enorme transferência de calor por convecção. Por mais eficiente que fosse o escudo de calor dos Shuttles, eles poderiam se soltar ou se danificar com extrema facilidade e isso poderia causar uma catástrofe em uma reentrada na atmosfera.

OS ERROS INACEITÁVEIS

   Os Ônibus Espaciais foram marcados por dois dos mais tristes episódios da história da exploração espacial, o acidente da Challenger e do Columbia.

    Passados ​​tantos anos após os dois acidentes é fácil identificar os responsáveis, mas vou evitar ir por esse caminho aqui. Assim como qualquer outro projeto, os Shuttles tiveram problemas que só foram identificados muito tempo depois de eles entrarem em operação, o problema é que se tratando de um veículo espacial, qualquer mínimo erro é mais do que o suficiente para acabar com uma missão e as vidas dos tripulantes, mas é fato que a gerência da Nasa e a estrutura da entidade tiveram um papel fundamental nas duas tragédias.

A PRESSA DA CHALLENGER

Tripulação da STS-51:  Ellison S. Onizuka, S.Christa McAuliffe, Gregory B. Jarvis, Judith A. Resnik, Michael J. Smith, Francis R e Ronald E. McNair.

    O ano era 1986 e a Nasa já sofria com o Programa dos Ônibus Espaciais. O maior problema foi o fato de a Nasa ter vendido ao congresso uma ideia de que os Shuttles seriam baratos, seguros e fáceis de voar, isso causou uma pressão enorme para a entidade realizar muitos lançamentos, afinal, eles precisavam justificar o orçamento. Além disso, após o Programa Apollo, a Nasa perdeu boa parte do apoio popular e, como bem sabemos, sem apoio, sem verba, então em 1985 foi anunciado que no ano seguinte a primeira cidadã americana seria enviada ao espaço, ela era a professora Christa McAuliffe, com isso a Nasa conseguiu um apoio e mobilização pública antes vista apenas na época do Programa Apollo.

    Como mencionado anteriormente, os anéis de vedação dos boosters laterais perdiam grande parte da resiliência quando submetidos a temperaturas muito baixas, esse problema já havia sido identificado pelos engenheiros da Thiokol quase dois anos antes do lançamento da Challenger, por conta disso, uma força tarefa foi realizada para solucionar o problema que consistia em redesenhar a junta dos boosters laterais, no entanto, esse processo levaria ao menos dois anos e custaria muito dinheiro, algo que a Nasa não cogitou fazer naquela época.

Caixa de Texto: Pluma vista no booster auxiliar do Shuttle antes da explosão.

    Em 1986 havia uma pressão muito grande pelo lançamento da Challenger, a Nasa era criticada por quase nunca lançar os Shuttles no prazo, mas isso era impossível de se fazer pois os Shuttles eram extremamente caros e complexos de serem lançados, e o pior, longe de serem totalmente seguros, mas devido à pressão da mídia e alta gerência da Nasa, a Challenger foi lançada no dia 28 de janeiro de 1986. O lançamento não foi uma unanimidade, na noite anterior houve uma discussão de horas entre gerentes da Nasa e os engenheiros da Thiokol, os engenheiros recomendaram não fazer o lançamento pois não achavam seguro lançar com uma temperatura abaixo de 11°C, naquele dia faria 3°C no momento do lançamento, eles sabiam que o problema dos anéis de vedação poderia ser algo catastrófico, no entanto, a Nasa colocou uma pressão muito grande sobre os engenheiros que acabaram por recomendar o lançamento.

    Foi na manhã daquele dia 28 de janeiro que os EUA e o mundo ficaram horrorizados com a explosão da Challenger 73 segundos após o lançamento, matando não instantaneamente todos os 7 tripulantes a bordo. Foi uma tragédia completamente evitável, no dia seguinte ao lançamento a temperatura já era adequada, mas a pressa da Nasa foi determinante naquela ocasião.

    O acidente fez o programa dos Ônibus Espaciais sofrerem um atraso de dois anos, os foguetes auxiliares foram redesenhados e só então os Shuttles voaram novamente em 1988, agora muito mais seguros, mas a alteração no projeto já havia sido solicitada muito antes da Challenger explodir. O programa se recuperou, mas a mancha daquela tragédia ficou marcada para sempre.

A QUASE INEVITABILIDADE DO COLUMBIA

Tripulação da STS-107: David Brown, Laurel Clark, Michael Anderson, Ilan Ramon; Rick Husband, Kalpana Chawla, William McCool.

    A tragédia do Columbia é muito diferente da Challenger, mas tem suas tristes semelhanças que acabaram novamente tendo a participação da Nasa.

   Foi mencionado anteriormente que o tanque externo do Shuttle tinha um isolamento térmico que poderia se desprender na hora do lançamento, também foi mencionado que o escudo de calor do orbitador era extremamente frágil. Pois bem, no dia 16 de janeiro de 2003 a STS-107 decolou com o Columbia no Kennedy Space Center em mais uma missão, mas durante a decolagem, as câmeras registraram um pedaço de espuma atingir a asa esquerda do orbitador. Apesar disso, a Nasa subestimou a importância daquele evento pois situações semelhantes já haviam sido documentadas antes e nenhuma tragédia havia ocorrido.

    Os engenheiros, no entanto, não pensaram dessa forma. Eles identificaram o problema no lançamento e imediatamente realizaram simulações para determinarem a gravidade da situação, no entanto, as simulações não eram conclusivas, então os engenheiros pediram para a Nasa instruírem os astronautas a realizar uma inspeção manual do bordo de ataque da asa esquerda do Columbia para que os engenheiros pudessem ver a dimensão do problema, no entanto, a Nasa recusou todos os pedidos. Os engenheiros sabiam que aquele problema poderia ser catastrófico dependendo da dimensão do dano, eles calcularam algumas trajetórias de reentrada menos agressivas para o caso de o dano ao escudo de calor ser pequeno, mas eles não tinham ideia da dimensão real do problema e nada puderam fazer.

    Foi no dia 1 de fevereiro de 2003 que o Ônibus Espacial Columbia reentrou na atmosfera terrestre e se esfacelou logo depois sobre o território americano. Novamente houve uma negligência grave da Nasa ao não atender os pedidos dos engenheiros preocupados em identificar o problema. O pedaço de espuma que atingiu o bordo de ataque da asa esquerda do orbitador era leve como isopor, mas sofreu uma desaceleração enorme ao se soltar devido à baixa densidade do material, dessa forma ele atingiu o orbitador a uma velocidade relativa de 850 km/h, suficiente para abrir um buraco de 40 cm no bordo de ataque da asa e condenar a espaçonave na reentrada.

OS DIAS DE MELANCOLIA

    Após os acidentes da Challenger e do Columbia, o Ônibus Espacial se tornou um veículo muito mais seguro de voar. Os boosters laterais foram redesenhados, houve alterações em certas partes do tanque externo para evitar que a espuma de isolamento se soltasse, equipes eram treinadas para realizar missões de reparo do escudo de calor no espaço. Havia também sempre alguma missão de prontidão para realizar o resgate dos astronautas caso fosse necessário, como no caso da STS-125 onde um Ônibus Espacial de backup ficou de prontidão caso fosse necessário realizar um resgate. Era realizada, também, uma inspeção visual do escudo de calor dos orbitadores feito por um braço robótico e astronautas da Estação Espacial Internacional, eram nessas inspeções que os orbitadores realizavam o famoso flip chamado de “rendezvous pitch maneuver”. 

    É verdade que fica o sentimento de que todas essas medidas poderiam ter sido tomadas desde o princípio, mas isso não aconteceu. Os dias finais dos Ônibus Espaciais foram totalmente melancólicos. Após o desastre do Columbia, a Nasa adiantou o processo de aposentadoria dos Shuttles, depois daquele acidente todo voo do Shuttle era visto com desconfiança e certo medo, era quase como se fosse um peso que a Nasa teve que carregar até a conclusão da Estação Espacial Internacional. Foi então no dia 8 de julho de 2011 que a STS-135 decolou com o Ônibus Espacial Atlantis naquele que seria o último voo da mais icônica espaçonave feita pelo homem.

    Já havia se passado 30 anos desde o primeiro voo do Columbia, 14 pessoas haviam perdido a vida no programa, os Shuttles eram veículos de uma complexidade fora de série e com um custo de operação astronômico, além disso eles já eram veículos datados e por maior que fossem as preocupações com a segurança, os Shuttles nunca foram seguros, ainda assim, eu não queria que o fim deles tivessem sido tão melancólicos.

    O legado deixado pelos Shuttles é enorme, sem eles a Estação Espacial Internacional jamais teria sido construída, eles também lançaram o Hubble e fizeram diversas outras missões que só foram possíveis devido a capacidade dos Shuttles. Por mais caros e complexos que eles tenham sido, a Nasa mostrou o caminho certo ao mundo, os veículos espaciais precisavam ser baratos e reutilizáveis. Se hoje vemos foguetes incríveis como o Falcon 9, Falcon Heavy ou mesmo a inovadora Starship, se vemos cápsulas como a Dragon e Starliner, de certa forma tudo isso só aconteceu devido aos Ônibus Espaciais que mostraram para o mundo o caminho certo a se seguir. 

A espaçonave mais incrível feita pelo homem será para sempre lembrada.

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